Pré-sal, uma história de brasileiros
Por Brizola Neto
Em fevereiro de 2003, a elite dos técnicos da empresa (a Petrobras) – um grupo de vinte geólogos, geocientistas e engenheiros – reuniu-se a portas fechadas para ouvir as conclusões do estudo. (O geólogo Mário)Carminatti informou-lhes que havia a possibilidade de existir grande quantidade de petróleo na região. Mas isso só poderia ser comprovado com a perfuração dos poços, o que gerava dois problemas descomunais. Primeiro, as áreas com potencial ficavam entre 5 e 7 mil metros de profundidade. E o máximo que a Petrobras havia atingido era uma profundidade de 1 886 metros – o que já era um recorde mundial. Em segundo lugar, tratava-se de buscar petróleo em rochas desconhecidas, que estavam ali há 120 milhões de anos, antes mesmo de serem cobertas pelo mar e de o sal ter se acumulado sobre elas.
Cabia àquele punhado de técnicos analisar, de início, se valia a pena dar continuidade ao projeto. A companhia estaria disposta a investir milhões de dólares num projeto novo e sem garantia de haver petróleo? Decidido o prosseguimento, seria necessário definir a prioridade na exploração – ou seja, dos quatro blocos adquiridos, qual seria prospectado primeiro, com base nos estudos sísmicos.
Havia, por fim, uma questão legal. Pelas regras da Agência Nacional do Petróleo, a ANP, as empresas que adquiriram blocos em leilão tinham um prazo para estudar os dados obtidos com os levantamentos sísmicos. Feito isso, deveriam optar ou não pela sua exploração, mas podiam permanecer com no máximo 50% das áreas, devolvendo o restante para a Agência. E era aquele grupo que teria que indicar as áreas a serem devolvidas. “Tudo isso gerou uma ansiedade muito grande”, lembrou Carminatti. “Todo o nosso conhecimento geológico estava sendo posto em xeque. Um erro de avaliação poderia causar pesados prejuízos à Petrobras e a seus parceiros.”
Àquela reunião seguiram-se inúmeras outras, cada vez mais tensas. Parte do grupo achava um delírio perfurar a mais de 5 mil metros de profundidade, numa área desconhecida. “Não era só a questão de se haveria ou não o óleo, mas se teríamos equipamentos para descer a tal profundidade e como se comportaria a camada de 2 quilômetros de sal, que nenhuma empresa no mundo jamais ousara atravessar”, disse Carminatti. O grupo não chegou a um consenso. A posição majoritária, de continuar com o projeto, foi levada a Guilherme Estrella, diretor de Exploração e Produção da Petrobras.
Guilherme Estrella é um geólogo de 66 anos, cujo rosto rechonchudo e a calva lhe conferem um aspecto bonachão. A imagem de sujeito pacato, avesso a celeumas, se desmancha logo que começa a falar sobre o pré-sal. No final de outubro, ele me recebeu em sua ampla sala, no 18º andar do prédio da Petrobras, de onde se tem uma bela vista para as montanhas de Santa Teresa. “Muita gente fala que tivemos sorte. Sorte uma ova”, disse. “O pré-sal é resultado do estabelecimento de metas exploratórias, da exploração de petróleo na ponta da broca, sem saber o que vai acontecer. Temos ferramentas que diminuem o risco, mas elas não garantem 100% o que vamos encontrar. Se não, qualquer um furava e encontrava o óleo.”
Estrella entrou na Petrobras em 1965 e trabalhou por 29 anos. Decidiu se aposentar em 1994, quando ocupava um dos cargos de maior prestígio: o de superintendente-geral do Centro de Pesquisas. Ele discordara da decisão da empresa de não promover dois geólogos por serem ligados a Associação dos Engenheiros da Petrobras, na época crítica ferrenha da direção da estatal. Viúvo, ele se mudou para Nova Friburgo, cidade na região serrana do estado do Rio, onde costumava passar as férias na infância. Lá, entregou-se pacatamente à leitura de livros de história natural e filosofia e à observação da natureza: “Sempre fui uma pessoa de múltiplos desejos e interesses. Fiz até curso de catador de semente, subindo em árvores.”
Em 2001, Estrella abandonou o idílio e envolveu-se com política partidária, tornando-se presidente do diretório do Partido dos Trabalhadores de Nova Friburgo. “Formamos uma chapa de oposição aos candidatos da direção nacional do PT e vencemos”, contou. “Nós éramos o que havia mais à esquerda do partido.” Com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 2002, José Eduardo Dutra, ex-senador do PT de Sergipe, foi alçado à presidência da companhia, e chamou Estrella de volta para a empresa, dessa vez para o cargo de diretor de Exploração e Produção. “Eu já estava aposentado há oito anos, mas nunca havia perdido o contato com a empresa”, explicou. E brincou: “Ao contrário do que acontece com a maior parte dos relacionamentos, a Petrobras é uma relação para a vida inteira.”
Seu retorno deu-se em meio a críticas, boa parte vinda dos setores tucanos que haviam dirigido a empresa por oito anos. Dizia-se que era um risco colocar um técnico defasado na diretoria, que é o coração de qualquer companhia de petróleo. E se associou sua nomeação ao “aparelhamento” da empresa. “Para me desmerecer, diziam que a Petrobras tinha ficado tão ideologizada que estavam colocando na diretoria de Exploração e Produção o presidente do microdiretório de Nova Friburgo”, contou, rindo.
“Quando cheguei aqui de volta, não encontrei uma empresa de petróleo”, ele lembrou. “A Petrobras tinha se transformado em uma instituição financeira. Uma empresa de petróleo tem que correr riscos, tem que ser agressiva na exploração, tem que investir muito e desenvolver tecnologia e conhecimento geológico. Banqueiro não quer correr risco.” Seu discurso foi ficando mais inflamado: “Quiseram mudar a cultura da companhia e transformá-la numa empresa exclusivamente comercial. Quiseram trocar seu nome para Petrobrax, mas o povo brasileiro não aceitou. Do Oiapoque ao Chuí se levantaram as mais diferentes vozes, da esquerda à direita, e destruíram aquela iniciativa imbecil de apagar o nome Brasil da maior empresa brasileira, nascida de nossas entranhas.”
Estrella apontou para um mapa em que estão demarcadas as áreas hoje em exploração e, mais calmo, continuou: “Veja como as orientações para a exploração de petróleo nos governos Fernando Henrique e Lula são completamente diferentes. Nós vínhamos reduzindo drasticamente a aquisição de blocos. Se não tivéssemos revertido essa tendência, chegaríamos ao final de 2009 praticamente sem áreas para explorar.”
Se você quer continuar a ler esta fantástica história sobre como o Brasil chegou a este tesouro petrolífero do pré-sal, conhecer melhor os desafios que nos esperam e entender nossa capacidade de enfrentá-los com a Petrobras, leia a excelente matéria da jornalista Consuelo Dieguez, que está publicada no site da Revista Piauí.
Daqui a 30 anos, esta história fará parte de livros de história, será roteiro de filmes. Será, sobretudo, parte da memória da construção de um país, protagonizada por homens que terão seus nomes honrados e homenageados como construtores do Brasil.
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